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terça-feira, 30 de abril de 2013

O balé e a favela


O ensino da dança exige preparo, consciência e conhecimento na área de educação e, acima de tudo, compromisso social dos educadores




Nos últimos anos, tornou-se crescente o número de reportagens apresentando gloriosas experiências de bailarinos (proveniente de balé clássico) junto à população de baixa renda. O feito mais exemplar foi a abertura de uma filial da escola do Ballet Bolshoi em Joinvile, Santa Catarina. 



Lamentavelmente, as múltiplas iniciativas relacionadas ao ensino de dança a que temos assistido, muitas vezes cercadas de ótimas intenções, têm sido amplamente apoiadas por órgãos governamentais, fundações, associações e pela mídia, sem que se avalie com critério, crítica e fundamentação o que significa ensinar e trabalhar com dança no Brasil. 

A ingenuidade (no sentido utilizado pelo educador Paulo Freire) com que a dança ainda é abordada, tanto pelas media como pelo mundo educacional e acadêmico, é um retrato fiel do descaso e da ignorância com que o corpo, a arte e a educação vêm sendo tratadas ao longo dos séculos em nossa sociedade. 

É o que acontece quando artistas sem qualquer reflexão educacional ou didática e, às vezes, até mesmo sem qualificação na própria área de dança, resolvem subir os morros ou entrar nos centros educacionais para “levar” à população “carente” a “Arte do Balé”. À primeira vista, poderíamos ter a ingênua impressão de que esta Arte, tradicionalmente de elite e reservada às meninas brancas de classe alta, está sendo “democratizada”, dando-se oportunidade às massas de “sonhar”, “descobrir seus talentos”, “apropriarem-se da cultura dominante”, “terem um lugar ao sol”. Não é bem assim.


Não se trata, absolutamente, de negar à população de baixa renda acesso a uma arte que faz parte da cultura ocidental da dança, tampouco de pregar um nacionalismo exacerbado em relação à dança no Brasil (no qual só poderíamos dançar e ensinar as danças populares nacionais). Não podemos, no entanto, deixar de nos perguntar, quando ensinamos, incentivamos e, principalmente, patrocinamos com verba pública atividades como estas, qual o sentido e a relevância pessoal, cultural e, principalmente, social destas iniciativas. 

Por trás de um ingênuo “plié”, de uma pirueta ou de um “grand jeté” (passos do balé), estão valores culturais, sociais e políticos intimamente ligados à determinada classe social, gênero, etnia e nacionalidade das sociedades onde se originaram. Trabalhar com o balé clássico na periferia significa levar às crianças e aos jovens posturas, atitudes e comportamentos que muitas vezes contradizem, anulam e menosprezam valores e conquistas da sociedade brasileira contemporânea. É levar ilusão e não educação.

De todos estes valores, um dos mais preocupantes são os aprendizados em relação a gênero impregnados tanto nas formas de ensino quanto nos repertórios do balé. A sociedade brasileira escandalizou-se e reprimiu fortemente a “extravagância” da sexualidade borbulhante veiculada através das danças de TV, dos bailes das ninjas do funk. A objetificação da mulher por meio da dança foi contestada de todas as formas possíveis. Por outro lado, não nos escandalizamos com a mesma veemência com a assexualidade e a passividade que o balé imprime nos corpos de nossas meninas. Não achamos ruim que aprendam a calar, que troquem suas vidas pessoais pela “Arte”, que se tornem “material humano” do coreógrafo adulto. Ao contrário, calamo-nos diante desta situação e, em muitos casos, até incentivamos estas posturas.

Já são muitos autores em todo o mundo, inclusive ex-bailarinas, que denunciaram criticamente o mundo do balé clássico. São incontáveis as histórias de meninas, com seus corpos e personalidades em formação, que se submeteram ao puro adestramento do corpo, à tortura das balanças, aos ensaios sem fim, às exigências dos “corpos ideais” que devem ter as bailarinas clássicas. O professor, o espelho, as fotos de bailarinos famosos pregadas nas paredes, tornam-se referências externas que dizem pouco e se relacionam quase nada à vida concreta de mulheres que vivem na pobreza e nas condições precárias da urbe. 

Por trás da “necessidade de disciplina corporal” escondem-se e aprendem-se a submissão, a competição, o auto-flagelo, a falta de iniciativa própria, a incapacidade de resolver, criar, optar e construir relações conscientes e sensíveis com seus corpos, consigo próprias e com o mundo. 

Paradoxalmente, o balé clássico, entendido pelo senso comum como uma arte altamente feminina, acaba imprimindo e ensinando aos corpos de nossas meninas posturas machistas como o controle externo, a competição sem limites, a rigidez, a impiedade e o racionalismo que menosprezam a organicidade, a percepção, a consciência e o saber dos corpos. 

A menos que o balé seja ensinado criticamente, com preocupação explícita de entendê-lo corporal e intelectualmente dentro de um contexto histórico e social específico, estará também gerando mulheres que provavelmente serão incapazes de dar continuidade e de imprimir seus próprios ideais à luta maior de igualdade de direitos, respeito e participação da mulher na sociedade brasileira e no mundo. Este tipo de ensino exige preparo, consciência e conhecimento na área de educação e, acima de tudo, compromisso social dos educadores. Portanto, não é qualquer pessoa que pode ensinar dança – é necessário formação, estudo, reflexão e experiência pedagógica.

De boas intenções o mundo está repleto. Não podemos mais permitir que a ignorância em relação ao ensino de dança prepondere e continue reproduzindo um mundo que tem pouquíssimas possibilidades de contribuir para a formação de crianças e jovens. Acima de tudo, precisamos de um ensino de dança comprometido com o potencial criativo, construtivo e transformador que, certamente, está ausente das aulas de balé tradicional. 

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