O ensino da dança exige preparo, consciência e conhecimento na área de educação e, acima de tudo, compromisso social dos educadores
Nos últimos anos, tornou-se crescente o número de reportagens apresentando gloriosas experiências de bailarinos (proveniente de balé clássico) junto à população de baixa renda. O feito mais exemplar foi a abertura de uma filial da escola do Ballet Bolshoi em Joinvile, Santa Catarina.
Lamentavelmente, as múltiplas iniciativas relacionadas ao ensino de dança a que temos assistido, muitas vezes cercadas de ótimas intenções, têm sido amplamente apoiadas por órgãos governamentais, fundações, associações e pela mídia, sem que se avalie com critério, crítica e fundamentação o que significa ensinar e trabalhar com dança no Brasil.
É o que acontece quando artistas sem qualquer reflexão educacional ou didática e, às vezes, até mesmo sem qualificação na própria área de dança, resolvem subir os morros ou entrar nos centros educacionais para “levar” à população “carente” a “Arte do Balé”. À primeira vista, poderíamos ter a ingênua impressão de que esta Arte, tradicionalmente de elite e reservada às meninas brancas de classe alta, está sendo “democratizada”, dando-se oportunidade às massas de “sonhar”, “descobrir seus talentos”, “apropriarem-se da cultura dominante”, “terem um lugar ao sol”. Não é bem assim.
Não se trata, absolutamente, de negar à população de baixa renda acesso a uma arte que faz parte da cultura ocidental da dança, tampouco de pregar um nacionalismo exacerbado em relação à dança no Brasil (no qual só poderíamos dançar e ensinar as danças populares nacionais). Não podemos, no entanto, deixar de nos perguntar, quando ensinamos, incentivamos e, principalmente, patrocinamos com verba pública atividades como estas, qual o sentido e a relevância pessoal, cultural e, principalmente, social destas iniciativas.
De todos estes valores, um dos mais preocupantes são os aprendizados em relação a gênero impregnados tanto nas formas de ensino quanto nos repertórios do balé. A sociedade brasileira escandalizou-se e reprimiu fortemente a “extravagância” da sexualidade borbulhante veiculada através das danças de TV, dos bailes das ninjas do funk. A objetificação da mulher por meio da dança foi contestada de todas as formas possíveis. Por outro lado, não nos escandalizamos com a mesma veemência com a assexualidade e a passividade que o balé imprime nos corpos de nossas meninas. Não achamos ruim que aprendam a calar, que troquem suas vidas pessoais pela “Arte”, que se tornem “material humano” do coreógrafo adulto. Ao contrário, calamo-nos diante desta situação e, em muitos casos, até incentivamos estas posturas.
Paradoxalmente, o balé clássico, entendido pelo senso comum como uma arte altamente feminina, acaba imprimindo e ensinando aos corpos de nossas meninas posturas machistas como o controle externo, a competição sem limites, a rigidez, a impiedade e o racionalismo que menosprezam a organicidade, a percepção, a consciência e o saber dos corpos.
De boas intenções o mundo está repleto. Não podemos mais permitir que a ignorância em relação ao ensino de dança prepondere e continue reproduzindo um mundo que tem pouquíssimas possibilidades de contribuir para a formação de crianças e jovens. Acima de tudo, precisamos de um ensino de dança comprometido com o potencial criativo, construtivo e transformador que, certamente, está ausente das aulas de balé tradicional.
Nenhum comentário :
Postar um comentário